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18.3.05

«Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor.»

«Maria Bloom olhava para um poema como se este fosse um auxiliar administrativo convocado para fazer funcionar a alegria ou, em oposição, a angústia.

Um poema não é uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoço. A vida de uma pessoa não tem material semelhante a nada que conheças. Existir é feito de peças impossíveis de copiar. E a poesia não entra nesse material único – a vida de uma pessoa – como o avião no ar ou o acidente do avião na terra dura. Um poema não é manso nem meigo, não é mau nem ilegal.

Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor. O que é a fita métrica comparada com algo intenso? Há poemas que explicam trinta graus de uma vida e poemas que são um ofício de demolição completa: o edifício é trocado por outro, como se um edifício fosse uma camisa. Muda de vida ou, claro, muda de poema.

Certos poemas fazem-te entender melhor o morto. E outros fazem-te entender melhor o bebé que nasceu. Por vezes o mesmo poema alcança os dois sítios opostos, e em cada destino exerce força e intensidade. Sabes como se exerce a intensidade. A intensidade exerce-se em silêncio, em imobilidade absoluta. Mas a intensidade é uma invenção de quem sabe que o mundo não termina aqui. Nenhuma excitação é tão forte como a que existe em alguém que se prepara para fazer algo.

E ninguém é nomeado por uma bala. Pelo contrário: cada bala que mata rouba um nome: com o tempo o nome dos mortos é menos citado que o nome dos vivos.

Não se preparam os sentimentos como
se prepara uma conferência. Os
sentimentos são coisas da ordem do repentino.
Surpreendem quem os exibe como o
ouro súbito colocado no bolso do
pobre. Daí que a falência do coração seja mais
provável que as outras. E mais usual.
Tal como as ervas daninhas existem em maior
quantidade que a rosa de cor certa. E há
livros que nos fazem perder a saliva.
Ficamos mudos.
E explicações que nos fazem perder
o desejo que do nosso corpo
parte para o mundo, perturbando-o. Ninguém
tem beijos se não tiver a quem os dar.
Precisamos com urgência
de uma ciência obcecada pelo falso, de
uma ciência que se desinteresse do verdadeiro
ou pelo menos do explicável.
Não és capaz de descrever a água.
Não há fórmulas químicas, por exemplo,
para o banho depois do amor
ou para o banho depois do assassinato. A água
não é a mesma nas duas situações.
H2O? Que ridículo.
A água respeita mais um poeta que
o livro de leis.
Interrompe o jardim (doméstico), meu caro,
com o bosque (bruto).
Inventa pontos de fúria numa frase,
e ainda pontos tranquilos.
Imita-te, e falha. A criatividade é isto.»

Gonçalo M. Tavares – A Perna Esquerda de Paris | Bloom Books
A PERNA ESQUERDA DE PARIS SEGUIDO DE ROLAND BARTHES E ROBERT MUSIL
Relógio d’Água Editores, Lisboa, Novembro de 2004 – pp. 45-46.

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