22.3.05

O Livro da Tila

No Domingo das Legislativas almocei, entre viagens, em casa dos meus pais. Durante uma hora, a minha mãe e eu acabámos sozinhas a conversar e a beber café. É preciso explicar que não tenho livros nenhuns da infância porque a minha mãe foi fazendo com eles uma biblioteca, na escola onde deu aulas, biblioteca essa que ficou quando se veio embora. Por outro lado, naquela casa nunca se fez um recenseamento de livros e há estantes do rés-do-chão ao sótão e grupos ocultos de edições dentro de móveis diversos, porque não cabem nas estantes. Por fim, entre tios, primos e amigos mais íntimos, existe uma rede recíproca de distribuição, requisição, empréstimo e pilhagem de livros. Em suma, parte substancial dos livros nunca sabemos bem se está e onde está, embora a maior improbabilidade seja mesmo a de encontrar livros da minha infância. Nessa tarde, a meio da conversa, levantámo-nos, fomos a uma estante que era o paradeiro mais provável de um livro de José Gomes Ferreira de que a minha mãe se lembrou, e começámos a procurá-lo.

Veio então parar-me às mãos O Livro da Tila, de Matilde Rosa Araújo, com cantigas pequeninas. Não é sequer de um tempo em que eu soubesse ler, ainda que mal. É do tempo em que a minha mãe me lia tudo. A capa pareceu-me familiar de forma intensa e, porque não era suposto eu ter-me esquecido do livro, de forma desagradável. O tempo em que a minha mãe me lia tudo foi um estado de graça. Passávamos muito tempo juntas com as histórias e as cantigas e, quando eu era deixada a brincar, a minha mãe ficava por perto, em silêncio, a ler os livros dela. Havia uma sala cheia de sol, em frente a um jardim, a mesma que eu loucamente quis encontrar quando, em Lisboa, procurei uma casa para mim (fiz a vida negra a muitos agentes imobiliários até ficar satisfeita: «Não tem sol», «Não há árvores», «Não penso comprar uma casa para ter de sair dessa casa e ir para uma esplanada sempre que quiser ler ao sol, não faz sentido»).

O Livro da Tila, que esteve na biblioteca da escola e regressou da biblioteca da escola (o Hades dos livros da minha infância, o que faz do livro um Ulisses entre os seus hehe), voltou às minhas mãos muito gasto, quando já não era suposto eu voltar a vê-lo. Enquanto o folheava, sempre a pensar que não podia ser o mesmo, lembrei-me de uma coisa que fazia nos livros naquela idade: estradinhas a subir e a descer entre as linhas e as palavras. Encontrei-as como a uma assinatura. Trouxe o livro comigo porque não resisti. Ainda não sei se gosto de poder tocar-lhe.

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