D-503 é o número do herói do livro que estou a ler: Nós, de Evgueni Zamiatine (1920// Antígona, 2004). D-503 vive no futuro, num Estado Único em que todas as horas do dia são absolutamente controladas, mesmo as duas Horas Pessoais reservadas ao descanso de cada número. D-503 expõe em pormenor o mundo em que vive porque se propôs escrever um tratado em homenagem ao Estado Único. D-503 é feliz. Chama-nos selvagens. Ele e os outros números escarnecem do modo como compomos a nossa música e chamam à inspiração (obsoleta e ultrapassada) uma forma desconhecida de epilepsia... e com tanta matemática dei comigo, a meio da leitura, a lembrar-me dos recitais de teoremas do José Carlos Fernandes hehe
Estou ainda muito no começo e, para já, tenho uma pergunta que em breve pode encontrar resposta no próprio livro: como é que um homem que todos os dias se senta para escrever pode evitar interrogar-se? Se tiver sido condicionado para isso....
É uma escrita descritiva, ok. Um retrato. Mesmo assim, impõe a D-503 uma concentração e uma aproximação constantes ao mundo em que vive.
Isto sou eu ainda incrédula com o Estado Único de Zamiatine. Mas, por um lado, se tivesse de apostar, se tivesse de ser leviana (e selvagem) diria que um Estado Único como aquele que começo agora a conhecer não permitiria aos seus números o exercício da escrita. Por outro lado, não vivo no mundo de Zamiatine e, de inúmeras formas imensamente subtis e poderosas, é hoje possível não pensar... embora todas essas formas sejam naturais e caóticas e não, como em Nós, pensadas e ordenadas.
Tem piada como em todos estes livros (penso no Admirável Mundo Novo, no 1984 e no Fahrenheit 451... por ironia de dEUS nOSSO sENHOR só tinha lido até agora os livros que Zamiatine inspirou) e, sobretudo, na realidade, não existe um totalitarismo sem uma vontade implacavelmente dirigida a esse fim, sem que essa vontade se tenha concretizado, esquematizando infinitamente todos os pormenores da vida, impondo-os e mantendo-os a ferros.
É que ainda me parece que uma vontade sólida (dirigida porque dirigível) não se forma senão pelo pensamento interrogativo, o pensamento que massacra e encosta à parede certezas, verdades, respostas, tudo, e que coloca o homem, necessariamente, sozinho perante o mundo, contra o mundo (mesmo que venha depois a afirmar-se e a impor-se através de um poema ou de uma sinfonia). Isto é: os totalitarismos, que, por natureza, ultrapassam o individual, e que devem continuamente esmagá-lo para permanecer, têm origem numa espécie de "individual absoluto".
Beeeeeeeeeem...!, esperneiam os meus 2,3 leitores, mas que conversa vem a ser esta?! Partilho dessa indignação, à qual reconheço um direito com muitas reticências, muitos pontos de exclamação e de interrogação. Isto é demasiado denso para uma noite de Verão. Fixe fixe fixe é ser a escrita de Zamiatine muito divertida. D-503 tem fibra e faz-me falta quando não posso abrir o livro, embora ainda me pareça inverosímil e não compreenda como o deixam sentar-se a escrever. Só lhe pode fazer mal: são, pois, grandes as minhas expectativas quanto aos desenvolvimentos deste livro.
p.s. Pedimos perdão pela longa ausência sem atestado médico ou qualquer outro tipo de justificação, mas tem feito muito calor, temos tido muitos jantares, temos lido muitos livros e não temos tido tempo para nos concentrarmos em coisas virtuais (de notar como esta forma de colocar as coisas ressalva plenamente os disparates que se dizem no tasco, já que para esses não é necessária concentração).
24.8.05
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