9.2.06

Contra uma casa seca



Se tiveres de voltar a partir apoia-te numa casa seca. Não te preocupes com a árvore graças à qual, de muito longe, a reconhecerás. Os seus próprios frutos te matarão a sede.

Erguendo-se antes do seu sentido, uma palavra nos desperta, nos concede a claridade do dia, uma palavra que não sonhou.

*

Espaço cor de maçã. Espaço, compoteira ardente.

Hoje é um animal selvagem. Amanhã verá o seu salto.

*

Põe-te no lugar dos deuses e olha para ti. Uma única vez trocado ao nascer, corpo mondado onde a usura termina, tu és mais sensível do que eles. E repetes-te menos.

A terra tem mãos, a lua não as tem. A terra é assassina, a lua é desolada.

*

A liberdade é, a seguir, o vazio, um vazio para recensear desesperadamente. Depois, caros emparedados eminentíssimos, vem o forte cheiro do vosso fim. Como seria possível que vos surpreendesse?

(...)

Quando a máscara do homem se aplica ao rosto da terra ela fica com os olhos furados.

*

Estaremos a exorbitar para sempre? Pintados de fresco com uma beleza redimida?

Teria podido escolher a natureza como companheira e dançar com ela em todos os bailes. Amava-a. Mas não deve haver casamentos nas vindimas.

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O meu amor preferia o fruto ao seu fantasma. Eu unia um ao outro, insubmisso e curvado.

Trezentas e sessenta e cinco noites bem maciças, sem os dias, é o que desejo aos que odeiam a noite.

(...)

Chegaram uns arrasa-montanhas que só têm o que os olhos alcançam. Indivíduos rápidos a perseguir.

(...)

As nossas trovoadas são-nos essenciais. Na ordem das dores a sociedade não é fatalmente culpada, apesar dos seus lugares estreitos, suas paredes, sua ruína e restauração em alternância.

Não podemos medir-nos com a imagem que os outros fazem de nós. A analogia perder-se-ia logo.

*

A morte não se encontra nem aquém, nem além. Está ao lado, industriosa, ínfima.

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(...)

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Há os que deixam venenos e os que deixam remédios. Difíceis de distinguir. É preciso provar.

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(...)

*

Só somos mortos pela vida. A morte é a anfitriã. Liberta a casa da sua cerca e empurra-a até à orla do bosque.

Sol juvenil, eu vejo-te: mas onde tu não estás.

*

Temos de regressar sempre à erosão. A dor contra a perfeição.

(...)




René Char > "Contra uma casa seca" (1969-1970) > O Nu Perdido
ESTE FANÁTICO DAS NUVENS > antologia de Marie-Claude Char e Y. K. Centeno
Tradução de Y. K. Centeno > Cotovia, 1995

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