26.8.05

Outros vícios (ou aqui estou eu com Mrs. Miller)

Tal como depois de jogar Mafia não se permanece igual – deixou-me, desde logo, muito mais vulnerável ao jazz velhinho, de que já gostava, mas que agora exploro e ouço muito mais –, depois de ouvir Mrs. Miller abre-se, entre o passado e o futuro da alma de uma pessoa de bem, um abismo intransponível (é mesmo sexta-feira, ohbalhamedeus) e é todo um outro mundo aquele que surge perante os nossos ouvidos perplexos.

É a esse passado impossível que devo regressar por breves instantes. Há uns tempos, um amigo entrou em minha casa com um CD, que pôs a tocar, murmurando entre risos um prometedor Não vais acreditar. Era Natália de Andrade.



Não acreditei. Tal como quando descobri Graciano Saga e o clássico "Vem devagar, emigrante", pensei que tinha perdido uma qualquer fase do Herman. Era plausível, porque há pelo menos quinze anos (excepção feita à "Herman Enciclopédia") que só por azar vejo programas do Herman, já que não tenho a mínima pachorra para gramar variedades de grunho só para, a meio, não se sabe bem quando (ou se), curtir uma ou outra piada fixe entre o chorrilho de horrores brejeiros em que degenerou o humor de um tipo que deu à luz, um dia, o "Diário de Marilú". Esse meu amigo, porém, jurou-me que não. Que não era uma fase do Herman. Que era uma senhora verdadeira, uma cantora lírica, que tinha feito carreira no início dos anos 80. Ou tentado, contra a indiferença de Portugal, que não protege os seus (ler aqui como).

Passado algum tempo linkaram-me para a amostra de um disco de Mary Schneider, na Amazon. Novamente, os meus ouvidos estremeceram. Passei algumas semanas em pesquisa esmerada pela internet, reuni um número razoável de músicas da senhora, e pude por fim retribuir a oferta do amigo que me apresentou Natália de Andrade, dando-lhe a ouvir Mary Schneider. Natália de Andrade é soprano lírico-dramático. E Mary Schneider? Que dizer de Mary Schneider? Mary Schneider IODELA. Sobretudo, clássicos. Um drama igualmente generoso.



O que me espanta mesmo e me diverte ainda mais é que estas coisas sejam feitas a sério. Aliás, à séria. Para comover. Para fazer as pessoas felizes. Para cultivar as almas. Para enaltecer a música. Não posso, porém, negar, que o mundo seria muito mais pobre sem estes fenómenos. Apesar de me fazer dor de cabeça ouvi-las durante mais de dez minutos, volta e meia estou lá caída.

Ainda não completamente refeita destas descobertas (são todos dias inacreditáveis, como o Sol e como o Doutor Sousa Martins), o mesmo amigo que me levou Natália de Andrade, mostrou-me Mrs. Miller. Foi este fim-de-semana e ainda não tive tempo para reunir canções. Ouvi umas versões dos Beatles. E o tema "Downtown". Mrs. Miller é, como Natália de Andrade e Mary Schneider, estridente, mas com elas não se confunde. É a mais hilariante das três. Aquela que podia não ter chegado a existir se os Monty Python se tivessem lembrado disso primeiro (lembraram-se depois, compreendo-o agora). Toda ela é um contínuo e inimaginável vibrato. O meu pássaro azul já tinha visto uma colecção de canções de Mrs. Miller na posse de outro pássaro azul, mas, caramba, como podia eu adivinhar que era tão BOM?



E pronto, exprimi o meu júbilo. Encerro o post com um excerto da biografia de Mrs. Miller que, além de informativo, é um estímulo para todos aqueles que, em algum momento da vida, desanimaram.

Não desanimem. Lembrem-se de Mrs. Miller.

"Like any aspiring singer, Mrs. Elva Miller has had to struggle to be heard. In her case, though, the struggle has been going on for most of her [life]. When she was a child [*], people were forever telling her to knock off the singing and please go skip rope or something..."
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* Que insensibilidade, dizer isto a uma criança... há gente que só está bem a fazer mal, é o que é.

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