
UM LONGO NASCIMENTO
1.
Nasci num dia fora do calendário.
[...]
4.
Quando Pessoa entrava incógnito nas pequenas tabernas à borda do Tejo ainda tu não tinhas nascido. O ventre de tua mãe começava então a ganhar as primeiras letras de mulher. Nessa altura o teu pai andava de bicicleta a tirar as medidas aos homens e ainda não tinha ancorado ao largo de tua mãe. Só mais tarde, por dentro de um baile português, o teu pai olhou o colo amarelo de tua mãe. A quilómetros de distância o Pessoa entrava no Tejo num barco carregado de batatas.
A tua mãe não queria que nascesses. Tu eras de mais tarde. O teu pai todas as noites quando vinha de bicicleta e entrava na cama dizia que precisava de um filho. Um deus. Um homem. E convidava a tua mãe a nadar na sua esperança.
Por fim tu nasceste entre uma primavera e um bombardeamento adiado. Vinhas sujo. De lama e de sangue. E os teus olhos começaram logo a escrever.
[...]
6.
Prova da esfericidade da terra: a solidão.
Quando o mundo se aproxima do teu rosto, aparecem primeiro os silêncios e só depois se sente o medo.
[...]
8.
Em todos os tempos por sobre todas as idades uma maçã escondeu a manhã.
[...]
14.
Dorme à vontade. O pão está já escrito.
[...]
18.
Ao ler «A educação pela pedra» do J. Cabral Melo Neto:
eu apedrejei o cabral
em são paulo
empinei-me contra ele
em são paulo
encurralei-o num buraco
como um rato
puxei-lhe pelo rabo
cortei-lhe o rabo
fiz-lhe trinta por uma linha
até ele dizer com o olho
fora do sítio
chega chega
seu empreiteiro
tome lá a pedra
construa no areeiro.
[...]
29.
Aqui os homens guardavam castidade.
Porque levantariam trigo. O respeito das outras bocas. A indicação definitiva dum cónego para um emprego quando as pernas se deixassem de respirar.
[...]
34.
a) Silêncio. Por dentro do silêncio um pássaro. Ou por dentro dum pássaro um silêncio. O pássaro na gaiola. A gaiola no meu quarto. O meu quarto com os olhos no mundo. O pássaro que veio de Macau primeiro numa carta depois por detrás da tua pele. Compreendes? As alfândegas, as cabeceiras dos países.
O pássaro come. Canta. Dorme. Dormirá? Está suspenso na vaidade dos homens. Não sabe voar. Inútil a gaiola. Porquê a gaiola? O pássaro vive obscuramente nesta cidade onde só eu o conheço e tu. Mas tu morreste. Já não sabes. Ouvirás o pássaro ainda nas veias da terra? Ainda tens olhos? Ainda sabes? Quando deixares de ouvir mato o pássaro ou mato-me eu. Tens de escolher.
b) Estás morto. Levámos-te hoje flores. Muitas. Atadas com cordões de palha. Chovia. Havia pequenas poças. Umas seis ou sete ao comprimento da terra. Onde por baixo o teu corpo (suponho) chocalha para afugentar os bichos, deus.
Ficámos por ti primeiro num silêncio químico. A tua mãe mal podia conter os olhos que quase saíam de encontro a nós. Roíamos os dentes para não gritarmos ou rirmos. Assim comíamos as moscas que voavam em silêncio. Silêncios rente a silêncios. Pingos. O silêncio andava, girava. Fazia-nos pedras desgarradas da natureza.
Só a atenção das lágrimas de tua mãe entre as árvores. E lentamente comecei a incomodar-me porque era eu que transportava a medalha.
[...]
40.
Sangue. Agitar antes de usar.
41.
É de mim que o dia tem medo.
[...]
51.
Pássaro. Notícia magra.
52.
O CALENDÁRIO
Janeiro ler
Fevereiro mulher
Março usar
Abril música
Maio desenho
Junho respiração
Julho hábito
Agosto vocabulário
Setembro perder
Outubro país
Novembro retrato
Dezembro voltar
A boca para nos salvar.
(Janeiro de 67 a Dezembro de 68)
Manuel da Silva Ramos © Fenda